Estima-se que mais de 50 milhões de brasileiros vivem abaixo da linha da pobreza, e esses números são maiores nas regiões norte e nordeste. Estamos falando que mais ou menos ¼ da população sobrevive com menos de quatrocentos reais por mês em termos gerais, temos famílias inteiras vivendo com mais ou menos cinco reais por dia. Sim, você não leu errado. Essa é uma realidade persistente em nosso país, com famílias em situações ainda mais críticas do que as mencionadas. E é aí que está o pano de fundo desta história.
Maria é uma jovem pobre que mora em Aracaju com a avó, uma senhora que vende acarajé para sobreviver e sustentar a neta, a vida de ambas é muito simples, com tudo extremamente regrado e muito trabalho duro. Constantemente são expostas a humilhações, bullying e a abuso de poder por parte daqueles que deveriam ajudar e oferecer algum tipo de segurança. Porém, mesmo com todas as dificuldades e as rasteiras de uma sociedade injusta, Maria sonha, escreve, ama ler, é muito leal as suas amigas e se recusa a ser vista como uma qualquer, ainda que muitas vezes se sinta exatamente assim. Entretanto, ser exposta a tudo isso e MUITO mais, fez com que Maria desacreditasse em seu país, que sentisse vergonha de seu povo, que renegasse sua origem. A culpo? Jamais, por diversas vezes esse também é meu pensamento em relação ao país que vivemos. E é então, que Maria se vê agora como Miriam, babá, moradora da Alemanha, cursando faculdade e tentando de tudo para ser outra pessoa, o problema, é que por dentro por mais tente esconder, ela ainda carrega todas as feridas, cicatrizes e traumas, e pode ser que Alemanha e Brasil não sejam assim tão diferentes, principalmente porque o maior problema do mundo, são os próprios seres-humanos.
“Dizem que, quando morremos em um sonho, acordamos porque nosso cérebro não sabe o que acontece depois da morte. Mas, para mim, é diferente. Eu sei o que acontece. Eu acordo no inferno. Acordo no Brasil.”
Eu diria que é raro encontrar livros que falem da realidade de uma maneira tão crua e realista, com enredos que tenham a ousadia de tocar em temas sensíveis, tabus e cheios de amargura que escolhemos ignorar, ou só ver quando isso é de alguma forma escancarado em nossas caras. Lembra que mencionei lá no início sobre as famílias que vivem abaixo da linha da pobreza? Pois bem, a realidade desse dia a dia é um pouco dessecada aqui no enredo, somos confrontados por situações que geralmente não enxergamos ou tentamos nos apartar, porque não faz parte da bolha social na qual estamos inseridos. O mais próximo que chegamos normalmente é pela televisão em algum jornal, e olha lá… não é que não sabemos dessa realidade nua e crua, é que infelizmente em algum momento, ela apenas se tornou “normal”.
“Toda vez em que eu tenho um lapso de felicidade, eu sou interrompida. Interrompida por esse Brasil; interrompida pelos privilégios que são dados aos poderosos e pelas barreiras que impõem aos mais pobres, às vezes até para as coisas mais banais, simples e corriqueiras, como vender acarajé…”
A Vira-Lata conta a jornada de uma jovem em busca de identidade e respeito. Com capítulos que intercalam passado e presente, o autor nos apresenta a menina sofrida e ridicularizada, vista como a escória do mundo, quando na verdade o que lhe faltava eram oportunidades e ajuda, alguém que a enxergasse como ser humano, e não qualquer coisa. E também nos apresenta a Miriam, uma jovem marcada pela dor, perda e cheia de feridas emocionais, ao mesmo tempo em que é forte, determinada e disposta a tudo para renegar seu passado e ser alguém melhor, que venceu. E no meio dessa jornada ela passa a entender que toda sua luta, que tudo pelo que passou não é motivo de vergonha, mas sim de combustível para jamais parar de lutar. Porque todos merecemos oportunidades, amor, respeito, cuidado, uma boa educação, porque por mais clichê que isso possa parecer, essas são as únicas ferramentas capazes de criar uma sociedade melhor e mais justa, com pessoas mais conscientes e disposta a olhar para o próximo como se olhasse para si.
Eu vivi um misto de emoções, me senti revoltada, enfurecida, enojada, desesperada, angustiada, por vezes precisando respirar porque minha cabeça estava em um constante conflito de querer realmente negar que as coisas acontecessem da forma como estava sendo apresentadas, como se algumas cenas fossem absurdas, quando na verdade elas ainda foram “suaves”, perto de relatos e histórias reais. Sim, enquanto lia, pesquisei sobre a realidade das periferias, favelas, e a miséria. E caros leitores, é pra ficar chocado, é um tapa na cara, é para entender o que é privilégio, é pra buscar meios de como ajudar. E esse foi o ponto que mais amei na narrativa, ela é uma grande crítica social e política. Outra coisa que também amei encontrar foram as muitas referências literárias, citações, livros e autores maravilhosos mencionados ao longo dos capítulos. E ainda preciso mencionar que mesmo trabalhando um assunto denso, a leitura é muito rápida, fluida e desperta a tua curiosidade sobre qual será o fim desta jovem. A única ressalva que tenho e portanto o motivo para que a obra não ganhasse minhas cinco estrelas, é porque senti que algumas finalizações foram abruptas, me deixaram com um gostinho de quero mais, com a necessidade de mais detalhes, assim como a passagem do tempo, eu entendi que ela ocorria ao passar dos capítulos, mas em determinados momentos não foi algo que ficou totalmente claro, mas nada disso atrapalha a leitura ou diminui o seu poder de impactar e atingir o leitor.
“(…) Ainda tenho um longo caminho a percorrer, mas pelo menos consegui me desprender das amarras que me cegavam e não me deixavam evoluir.”
Preciso fazer uma menção honrosa a CAPAdeste livro. Perfeita, coerente e já deixa muito claro tanto no olhar, quanto na figura da menina ali representada, parte do que iremos encontrar. O artista da capa é Sami Souza (que não é parente do autor). Ele pode ser encontrado no instagram: @samisamurai – AQUI – e facebook Estudio Sami Souza – AQUI.
O livro é bem curtinho e pode ser lido em uma sentada, mas fica aqui um alerta, temos muitos GATILHOS, violência, abuso, bullying, cenas fortes, que para você que é sensível a algum dos temas pode não ser uma experiencia legal, então vale o cuidado.
Esse é o meu primeiro contato com a escrita do Álex Souza e estou muito feliz por ter conhecido o seu trabalho e com certeza seguirei de olho em suas novas publicações. Eu não pude entrar em muitos detalhes por causa dos spoilers, mas fica aqui essa forte recomendação de leitura, espero de alguma forma, ter despertado a sua curiosidade.
A VIRA-LATA
Sinopse: Maria é uma menina pobre de Aracaju que ajuda a avó em uma venda de acarajé. Sofrendo diariamente com racismo, precariedade do serviço público e autoritarismo, ela decide se mudar para a Alemanha, onde se torna babá e entra para a faculdade. Porém, a vida no Brasil havia transformado Maria de um jeito que a fez renegar a si mesma, levando-a a tentar parecer-se cada vez mais com uma alemã e a esconder suas raízes brasileiras.A Vira-Lata é uma tocante estória de superação, perseguição dos sonhos e auto-descobrimento que evoca clássicos de nossa literatura e cinema e discute o nosso famigerado complexo de inferioridade. Acompanhe Maria em sua jornada. Você com certeza vai se identificar com ela.
Ficha técnica:
Literatura nacional | Álex Souza | Publicação Independente | 2019 | 162 Páginas | #Publicidade | Classificação: 4/5 | Onde encontrar: SKOOB – AMAZON
SOBRE O AUTOR
ÁLEX SOUZA, natural de Aracaju-SE, cursa Direito no Rio de Janeiro. Começou publicando artigos científicos e hoje escreve ficção em diversos gêneros. Já publicou em antologias das editoras Andross, Lendari e Luminare. A Vira-Lata é seu romance de estreia.
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OUTRAS OBRAS DO AUTOR:
SANGUE VIENENSE
Sinopse:Viena, 190X. A cantora de ópera Melanie Stermann é uma estrangeira em seu próprio país. Criada na Alemanha, ela retorna à sua terra natal, onde é ridicularizada pelo seu sotaque e falta de senso de humor. Uma noite, após uma apresentação na Ópera Estatal, ela sai para admirar as ruas da Capital, como costuma fazer. Porém, ao ser sequestrada por um homem bizarro que a leva até a casa de sua mestra, a famigerada Lady Barthory, uma nobre que, tal como suas ancestrais, se banha em sangue de mulheres para preservar a beleza e a juventude, Melanie presenciará as mais cruéis formas de tortura e vai precisar de uma força sobrenatural para dar um fim nelas. Um conto sangrento e brutal, recheado de referências a Edgar Allan Poe, à músicas e a filmes de gênero, Sangue Vienense lhe proporcionará cenas e descrições que te acompanharão em seus pesadelos por um bom tempo.
Até a próxima! Bye.
0 comentário
Gostei muito do livro. Leitura densa, forte e muito pertinente.
Mesmo sendo curtinho, entrega ao leitor muitas camadas para reflexão.
Parabéns pela resenha!!!
Olá. É exatamente isso, uma leitura forte, que choca pela realidade nua e crua. As críticas sociais e chamadas para reflexões são importantes.
Obrigada por seu carinho.