Caros leitores! Vamos começar essa resenha deixando bem claro que este NÃO é um livro recomendado para TODOS os públicos. ALERTA DE GATILHOS para infanticídio, aborto, abuso sexual, violência, homicídio, depressão e alguns outros. Estou deixando este anúncio aqui e de forma tão incisiva, porque de verdade, é uma leitura densa, tensa, indigesta, incômoda, que causa estranheza… precisa ter estomago para ler, principalmente por se tratar de uma história baseada em fatos reais.
Se utilizando de uma delicada linha entre realidade e ficção, somos convidados a mergulhar profundamente em um dos casos mais marcantes da história criminal mexicana. Baseado em fatos reais, conheceremos Felícitas Sánchez, também chamada de Neyra e nomeada como “A Ogra”, pela gravidade de seus crimes. Enfermeira de profissão, Felícitas construiu um legado sombrio, envolvida em uma rede de tráfico, abortos e assassinato de crianças, crimes que chocaram a sociedade de sua época e ecoam até hoje nas páginas deste thriller.
“(…) A verdade absoluta de como foi nossa infância não existe. A memória é uma farsa. A vida é o que contamos, por isso eu gosto de ficção.”
O livro começa de maneira impactante, com detalhes perturbadores das crueldades cometidas por Felícitas. Essas descrições explícitas e realistas das mortes, abortos e violência infantil são tão vívidas que provocam uma reação visceral, criando uma atmosfera de desconforto e horror. A autora não poupa detalhes, nos levando a questionar desde as primeiras páginas, o quão longe pode ir a maldade humana. Nos primeiros capítulos, a intensidade dos crimes relatados por Felícitas é tão forte que parece quase impossível continuar a leitura sem sentir um peso emocional, sem ter o impulso de largar o livro e respirar fundo algumas vezes.
O enredo nos apresenta duas linhas temporais, uma do passado que é apresentada como fragmentos nos levando para dentro da casa de Felícitas e as coisas que ali aconteceram, e outro no presente décadas depois, onde conhecemos um escritor, Ignácio Suárez que terá seu nome de alguma forma envolvido com crimes recentes no momento em que ele recebe duas fotografias, que chocam pela similaridade com uma de suas obras. E é durante a investigação destes crimes, que alguns mistérios sombrios sobre Felícitas e seu passado voltam à tona, criando um entrelace que parece impossível de resolver.
“(…)Tememos outro ser humano porque sabemos do que somos capazes. Os demônios são representações feitas por um homem para dominar o outro através do terror. A igreja tem mais adeptos temerosos do inferno que adoradores de Deus.”
Um dos pontos altos do livro é a maneira como Verónica E. Llaca constrói os personagens. Eles são profundamente humanos em suas falhas e contradições, expondo o lado mais sombrio da natureza humana. A relação entre a realidade e a ficção é trabalhada com precisão, tornando difícil separar o que é histórico do que é inventado, o que acrescenta uma camada de mistério e inquietação à leitura. A trama é complexa e apresenta vários personagens, o que pode causar certa confusão no início, mas à medida que as peças começam a se encaixar, o enredo flui de maneira envolvente e cativante, despertando em nós uma necessidade de realmente desvendar cada pequeno detalhe do texto. Por vezes quis pesquisar no google os nomes dos personagens e a história real de Felícitas para tentar dimensionar o que estava lendo.
Mesmo com algumas reviravoltas sendo previsíveis, o desfecho não sendo de um todo surpreendente, o que compensa a leitura é toda a tensão acumulada. A autora não deixa pontas soltas, a parte ficcional critica as autoridades e como os “poderosos” podem interferir em uma investigação, e até levar a verdade para o mais longe possível, criando novos culpados e narrativas que montadas podem até fazer sentido – medo, principalmente por pensar no quanto disto acontece diariamente. A conclusão é satisfatória, amarra todas as camadas, e acredito que justamente por ser algo que mescla realidade com ficção, deixa um gosto agridoce.
“(…) Era uma espécie de expectador de todos os acontecimentos que narra, um observador que presenciava os atos mais atrozes sem falar nada, sem se comover, sem se assustar, sem sair correndo, sem evitá-los ou impedi-los.”
HERANÇA MACABRA é um livro que vai além de um simples thriller histórico/psicológico. Ele é desconcertante, brutal, incomodo, revoltante e envolvente, explorando o horror da natureza humana, os segredos que podem atravessar gerações, emaranhado familiar, extrema pobreza, impunidade, perdão… E algo que até então não mencionei com afinco, a LIBERDADE FEMININA sobre o corpo, as escolhas difíceis que precisam ser tomadas, e as consequências que elas deixam. A escrita imersiva da autora nos mantém presos do início ao fim, mesmo quando a realidade dos crimes de Felícitas se torna quase insuportável de se imaginar.
Deixo aqui minha forte recomendação de leitura, mas volto a te lembrar de todos os gatilhos, se atente a eles. Eu gostei bastante, Verónica é uma autora mexicana, jornalista, e eu gosto de explorar literaturas diferentes, e este aqui tem uma estrutura narrativa “atípica”, ao que costumo ler, e me agradou, quando eu vi que se tratava de um livro que usa de fatos reais, eu não esperava realmente os “heroísmos” que sempre nos deparamos, resoluções mirabolantes, ou investigações alucinantes, e neste ponto eu realmente acertei. É cru, é burocrático, é falho, é o que é… humano, real.
HERANÇA MACABRA – Verónica E. Llaca
Sinopse: QUANDO A MALDADE PERCORRE AS VEIAS, O SANGUE DOS INOCENTES ESCORRE PELAS MÃOS. Na fúnebre atmosfera do México dos anos 1940, as ruas de uma cidade tornaram-se palco dos atos macabros de Felícitas Sánchez Aguillón. Apelidada de “A Ogra do bairro Roma”, a parteira corrompeu sua nobre profissão assassinando dezenas de crianças sem deixar rastro de humanidade. A captura e subsequente condenação de Felícitas marcaram definitivamente a consciência coletiva da comunidade. Décadas mais tarde, Ignacio Suárez, um escritor da era contemporânea, tropeça em um legado de brutalidade que se recusa a permanecer enterrado. Fotografias enigmáticas de mulheres mortas chegam às suas mãos, trazendo o passado cruel para o seu mundo de palavras. As imagens carregam uma sinistra coincidência com cenas presentes em suas obras, obrigando-o a confrontar o fato de que o horror que imaginava escrever agora é apresentado em forma real com novas vítimas cruzando o seu caminho. Com o ressurgimento de pistas que remetem à falecida Felícitas, enigmas começam a tecer uma ponte entre eras e segredos ocultos na trama histórica. O enredo torna-se ainda mais intrincado quando a inesperada morte de uma figura central na investigação sugere que o perigo é uma entidade onipresente, um perseguidor incansável. O único artefato que restou é um manuscrito envolto em mistério, potencialmente ostentando a chave para desvendar verdades sinistras e estagnar a continuidade do derramamento de sangue. Ao navegar entre a história de Felícitas e os temores atuais que consomem Ignacio, Verónica Llaca nos conduz ao precipício de uma escuridão reveladora, onde as facetas mais sombrias da natureza humana emergem despidas de camadas de pretensão. O leitor é convidado a mergulhar neste labirinto onde eventos de épocas distantes se entrelaçam numa valsa macabra, levantando a questão: Por que será que certos eventos sombrios emergem, de tempos em tempos, assombrando-nos persistentemente como se fossem inevitáveis?
Ficha técnica:
Thriller Psicológico, Policial | Verónica E. Llaca | Faro Editorial | 1ª Edição | 2024 | 288 páginas | Tradução: Carol Aquino | Classificação indicativa: 18+ | Cortesia | Minha avaliação: 4/5 | Onde encontrar: SKOOB – AMAZON.
Até a próxima! Bye.